segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Revolta dos alfaiates teve grande participação popular


De todos os movimentos de revolta que eclodiram no Brasil colonial, a Conjuração baiana de 1798 foi o mais abrangente em termos dos objetivos políticos, da abertura à participação das camadas populares e dos ideais de mudanças sociais propostos. Assim como os inconfidentes mineiros, os conjurados baianos defendiam a emancipação política do Brasil através do rompimento do pacto colonial. Mas foram mais além, ao propor profundas mudanças sociais como a abolição dos privilégios vigentes que garantissem a igualdade entre os homens, de diferentes raças e cor, e o fim da escravidão.

O principal fator que fez irromper a conjuração baiana como um movimento de revolta popular radical está relacionado às condições sociais e econômicas da região do Recôncavo baiano. No fim do século 17, a região recuperou a prosperidade econômica com o renascimento agrícola. Tinha início a um novo ciclo da produção do açúcar.

Porém, o avanço da grande lavoura canavieira se fez em detrimento das pequenas propriedades agrícolas voltadas para a produção de subsistência. A diminuição da área ocupada pela lavoura de subsistência fez piorar as condições de vida das camadas populares. Enquanto os proprietários de engenho e os grandes comerciantes se beneficiavam com essa situação, os pequenos comerciantes e agricultores e os pobres e humildes sofriam com a alta dos preços e a escassez de alimentos.

Motins e rebeliões

O agravamento da situação social e econômica gerou inúmeros motins e rebeliões populares. Entre 1797 e 1798, presenciaram-se freqüentes invasões de armazéns de alimentos por populares que os saqueavam. Foi nesse contexto de revolta e descontentamento popular, que a Conjuração baiana, gradativamente, tomou forma como movimento organizado na luta por mudanças políticas e sociais. Mas não se pode perder de vista, também, que os ideais de mudança política e social defendidos pelos conjurados baianos, foram influenciados por outros movimentos sociais que eclodiram no mundo nesse mesmo período.

A Europa, por exemplo, desde 1789, atravessava um momento de profundas transformações sociais e políticas geradas pela Revolução Francesa. O Haiti, colônia francesa situada nas Antilhas, foi palco de convulsões sociais devido às freqüentes e violentas rebeliões e levantes de escravos negros. Em seu conjunto, as notícias desses acontecimentos tiveram ampla repercussão no Brasil e serviram para dar sustentação aos ideais de liberdade, igualdade e soberania popular propugnados pelos conjurados baianos.

Em seu estágio inicial, o movimento congregou membros da elite, ligados à grande propriedade agrícola e ao domínio escravista, que defendiam apenas a autonomia política do Brasil em relação a Portugal. Eles se reuniram e fundaram a sociedade secreta Cavaleiros da Luz. Não obstante, alguns dos membros da sociedade secreta romperam com os limites de sua classe social de origem, aderindo a perspectivas revolucionárias mais amplas.

Cipriano Barata e os alfaiates

Passaram a difundir propostas e ideais radicais entre os regimentos de soldados e a população em geral. O médico Cipriano Barata, por exemplo, foi um ativo propagandista do movimento, atuando principalmente entre a população mais humilde e junto aos escravos. Desse modo, a base social da Conjuração baiana foi se ampliando para a participação e mobilização popular. Com isso foi assumindo feições revolucionárias, tendo em vista a defesa dos interesses das camadas sociais mais pobres, dos humildes e dos escravos.

Aderiram e participaram do movimento, homens brancos mulatos, negros livres e escravos. Mas a presença de um contingente expressivo de alfaiates fez com que a Conjuração baiana ficasse conhecida também como a "revolta dos Alfaiates". Entre as principais lideranças do movimento destacam-se: João de Deus Nascimento e Manuel Faustino dos Santos, ambos mulatos e alfaiates; Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas Amorim Torres, também mulatos. A chefia militar do movimento estava sob comando do tenente Aguilar Pantoja.

Em agosto de 1798, o movimento dos conjurados baianos se encontrava organizado. Ele foi desencadeado pela difusão de panfletos e boletins que transmitiam mensagens contestatórias contra as autoridades metropolitanas. Frases foram escritas em locais públicos de grande circulação, como por exemplo: "Animai-vos povo bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que seremos todos irmãos, o tempo em que seremos todos iguais".

Execuções, prisão e desterro

Além do apoio popular, as lideranças do movimento buscaram também obter a adesão das autoridades coloniais, como a do governador dom Fernando José Portugal. Mas fracassaram nessa tentativa. As autoridades coloniais da região reagiram, desencadeando violenta repressão contra o movimento. Neste momento, ocorreu uma divergência entre as lideranças dos conjurados com relação ao rumo que o movimento deveria tomar, o que serviu para enfraquecê-lo.

As autoridades coloniais conseguiram infiltrar espiões no movimento, que ajudaram a perseguir e prender as suas principais lideranças. Em pouco tempo, o movimento de revolta dos conjurados baianos foi desarticulado. Os cárceres ficaram abarrotados de rebeldes provenientes das camadas populares que aderiram ao movimento. Membros importantes da elite pertencentes à sociedade Cavaleiros da Luz também foram presos, como Cipriano Barata, Aguilar Pantoja e Oliveira Borges. Assim como ocorreu com os conjurados mineiros, o julgamento dos conjurados baianos resultou em penas de execuções, prisão e desterro.

Devido à ampla adesão e participação popular, e em razão das propostas radicais defendidas, o movimento dos conjurados baianos representou o ápice das contradições sociais do período do Brasil colonial. Além da luta pela emancipação política do Brasil, a Conjuração baiana buscou romper com o sistema de dominação tradicional escravista vigente que estava assegurado pela elite colonial.

Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Extraído de: http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/conjuracao-baiana-revolta-dos-alfaiates-teve-grande-participacao-popular.jhtm

Bahia, 1798: a Revolução dos Jacobinos Negros

por Mário Maestri
Estraído de: http://www.espacoacademico.com.br/081/81maestri.htm
 
Alguns acontecimentos do passado são lembrados, festejados e registrados. Outros, ao contrário, tão ou mais significativos, são apenas conhecidos e, não raro, esquecidos. Como na sociedade dos homens, também não há justiça na história. A chamada Conspiração dos Alfaiates, ocorrida em 1798, em Salvador, apesar de constituir o mais radical movimento independentista ocorrido nos territórios do atual Brasil, completará 210 anos, em 12 de gosto, sem certamente receber o devido registro.

O mundo estava convulsionado, em fins do século 18. A maré revolucionária francesa chegara ao ápice, em 1794. Na Europa dos reis, propusera-se que todos os homens eram iguais e iguais direitos à felicidade tinham. E que tal destino seria cumprido, nem que para isso o mundo fosse colocado de pés para cima. 

Na mais rica colônia açucareira francesa, proprietários tentaram autonomizar-se e homens livres de cor reivindicaram a cidadania prometida em 1789, facilitando a insurreição dos cativos, em agosto de 1791, que pôs fim à escravidão e fundando o Haiti, segundo território da América a libertar-se do colonialismo, depois dos USA, e o primeiro a abolir a escravidão. Em 1789, a colônia francesa possuía 523 mil habitantes — 27 mil homens livres de cor e 465.500, escravos!

Desde 1789, o arcaico Estado absolutista lusitano mobilizara-se para que as idéias revolucionárias, democráticas e liberais — as temidas francezias — não chegassem à metrópole e às colônias. No Brasil, os raros visitantes estrangeiros eram seguidos e vigiados e as bagagens dos navios aportados, minuciosamente revistadas, à procura de livros e papéis subversivos. Na Colônia lusitana não havia uma só imprensa!

A vigilância era particularmente estreita em Salvador, o principal porto do Brasil colonial. Com sessenta mil habitantes, a ex-capital colonial, com ruas estreitas, irregulares e sujas, ladeiras íngremes, igrejas, mosteiros, casas térreas e sobrados de até quatro andares, era a segunda metrópole do império lusitano, após a populosa Lisboa, com cem mil moradores. Dois terço da população de Salvador era negra e mestiça; um terço, branca e nativa. A cidade não possuía uma só livraria!

Em 1798, apesar das dificuldades da produção colonial, a Bahia vivia relativo auge econômico, exportando, através do animado porto de Salvador, açúcar, algodão, anil, pipas de aguardente, fumo em rolo e muitos outros produtos, chegados do Recôncavo e do interior da capitania. Apesar de sua riqueza comercial, Salvador dependia da produção rural, já que praticamente nada produzia. Autoritárias determinações metropolitanas proibiam a produção manufatureira nas colônias luso-brasileiras. 

Os de cima e os de baixo
Do Porto e de Lisboa chegavam múltiplas mercadorias, produzidas nos principais centros europeus, que eram consumidas em Salvador e reexportadas para o interior e para as capitanias vizinhas – vinho, azeite, espingardas, pólvora, tecidos, vestimentas, materiais de construção, implementos domésticos, etc. O principal produto importando pela capitania era o trabalhador escravizado. 

O comércio baiano era controlado por ricos comerciantes, sobretudo portugueses. Entre os mais fortes mercadores, encontravam-se os negociantes de cativos. Da distante capitania do Rio Grande do Sul chegavam a Salvador grandes quantidades de charque, tradicional alimento das populações pobres e escravizadas.

Ao igual que no resto da colônia, a sociedade baiana era muito estratificada. No vértice da sua pirâmide social encontravam-se os grandes plantadores e os poderosos comerciantes; na base, as multidões de cativos, vergados pelos duros trabalhos dos campos e das cidades. Anualmente, grandes quantidades de cativos eram introduzidas na Bahia, chegadas da costa africana. A classe dos trabalhadores escravizados era muito heterogênea, dividindo-se em cativos nascidos no Brasil, de diversas cores de pele e diferentes situações profissionais, e africanos chegados de variados pontos da África. 

Entre os escravizadores e escravizados, subsistiam os homens livres pobres, com escassas possibilidades de ascensão social, mesmo quando possuíam “sangue limpo”. Eles empregavam-se como administradores, mascates, marinheiros, caixeiros, ingressavam no baixo clero, ocupavam cargos civis e militares inferiores, disputavam com os cativos ganhadores e de aluguel algumas “profissões mecânicas” e atividades artesanais. As sinecuras e colocações de prestígio eram privilégios dos portugueses natos, bem recomendados.

Em Salvador, os homens livres de cor trabalhavam como artífices, no pequeno comércio, arrolavam-se como soldados e suboficiais nas tropas de primeira linha, onde conheciam tristes condições de trabalho e soldo miserável. Comumente, para sobreviverem, os soldados tinham uma segunda atividade. Era deprimente a sorte desses homens livres pobres de cor. Além das escassas possibilidades de inserção econômica na sociedade colonial que dispunham, eram estigmatizados por possuírem a pele negra, fato desqualificador em uma sociedade escravista, o que impedia o acesso aos cargos e posições civis, religiosas e administrativas intermediárias. 

O sonho francês
Em fins do século 18, o Brasil tornara-se a grande fonte de recursos da Coroa e das elites lusitanas. O monopólio comercial imposto ao Brasil e taxas de toda natureza drenavam grande parte das rendas da Colônia e encareciam o custo de vida – dízimos, terças, rendimentos, selos, direitos, subsídios, donativos, donativos voluntários, etc. Uma petição anônima enviada à rainha dona Maria I, em 15 de agosto de 1897, descrevia com sombrias cores a situação a que os tributos reduziam a colônia: “Cada vez mais se vão multiplicando os males sobre males, reduzindo [o povo] a uma penúria geral de todo.” O “povo”, na época, era a população livre com algumas posses. A população pobre de Salvador, a “plebe”, o “vulgo”, etc., passava fome e cativos esmolavam comida pelas ruas.

Sobretudo entre as classes proprietárias coloniais, fortalecia-se a consciência do caráter parasitário do regime colonial lusitano, sentimento reforçado pela independência dos USA e pelo prestígio das idéias liberais e revolucionárias francesas, em uma época em que a França dominava o cenário político europeu. Nas Minas Gerais, havia dez anos, fora desbaratada uma conspiração para independentizar a capitania. 

Em 12 de agosto de 1798, chegou ao conhecimento de Fernando José de Portugal, então com 43 anos e governador da capitania da Bahia desde 1788, que haviam sido colados, de madrugada, em pontos de grande movimento de Salvador, doze boletins “sediciosos”, conclamando o povo a realizar a Revolução e instituir a República Baianense. Os manifestos teriam tido grande repercussão. Mesmo se poucos ou tivessem lido, seus conteúdos correram pela cidade, de boca em boca.

Anteriormente, em inícios de 1798, a forca fora queimada, durante a noite, sem que se descobrissem e fossem punidos os responsáveis. Tal ato constituía um crime de lesa majestade, visto o significado simbólico do macabro instrumento. Segundo parece, “ludribriosos pasquins” foram igualmente afixados sobre o “patíbulo público” incendiado. Em julho do mesmo ano, outro ou outros manifestos teriam sido afixados na cidade.

Os escritos permitem uma primeira apreciação da orientação do movimento. Eles pregavam a igualdade, a república, a independência da Bahia, a liberdade de comércio e de produção, elogiavam a França e exigiam o fim da discriminação social e racial. Ameaçavam os clérigos que combatessem as novas idéias e prometiam aumento de soldo para os soldados e oficiais de primeira linha. 

Como os manifestos motivassem grande alvoroço, o governador ordenou que se abrisse imediata devassa sobre os fatos. Eles constituíam crime gravíssimo, em uma época em que a Coroa lusitana tremia diante dos ventos revolucionários que ameaçavam o trono e o império colonial. Correria pela cidade a voz que os papéis eram produto de soldados e de oficiais pardos. 

Nos depoimentos, tomados a seguir, de testemunhas que ouviram falar dos manifestos, mas não os viram, emerge comumente uma clara reelaboração do conteúdo dos escritos que certamente apresentam reivindicações das classes subalternas não presentes nos textos, como a do tabelamento do preço da carne. Essa reconstrução dos conteúdos das mensagens era absolutamente normal em uma sociedade em crise em que o principal veículo de socialização das informações era a comunicação oral interpessoal.

O começo do fim

Na Bahia de então, o alfabetizado era avis raras, sobretudo entre a população pobre. Imediatamente, passou-se a cotejar a letra do autor dos manifestos com petições e reclamações existentes nos arquivos da Secretaria do Governo. A precária investigação policial grafológica apontou um primeiro suspeito. Em 16 de agosto, foi preso o pardo Domingos da Silva Lisboa, natural de Lisboa, filho de pais desconhecidos, de 43 anos, requerente de causas e escrevente de cartas, conhecido pelas idéias anti-religiosas e liberais, residente na ladeira da Misericórdia. Em sua casa, foram encontradas cópias manuscritas de versos, documentos e textos liberais. Os autos da devassa anotam que o mulato possuía mais de cem livros, para época, uma biblioteca de singular porte.

Como em 22 de agosto fossem conhecidas duas outras cartas, de igual letra, deixadas em uma igreja, e Domingos da Silva Lisboa se encontrasse preso e incomunicável, reiniciaram-se as buscas que resultaram na prisão, no dia 23, de Luís Gonzaga das Virgens, também pardo, de 36 anos, natural de Salvador, soldado do Segundo° Regimento de Primeira Linha. Também na sua moradia foi encontrada literatura liberal. Havia pouco, Luís Gonzaga, neto de português e cativa africana, requerera que não fosse indeferida uma sua promoção, por ser pardo.

A prisão do soldado acelerou a conspiração e fez emergir no centro dos acontecimentos João de Deus do Nascimento, casado, pardo, cabo da Esquadra do Segundo Regimento da Milícia, de 27 anos, e alfaiate bem estabelecido na rua Direita de Salvador. Temendo que Luís Gonzaga denunciasse os companheiros de causa, organizou, apressadamente, uma reunião de adictos e simpatizantes do movimento, a fim de deliberarem, eventualmente, sobre o melhor momento para a revolta.

O encontro da noite de 25 de agosto, sábado, no sítio do campo do Dique, na parte do Desterro, em Salvador, foi um fracasso. Segundo os autos da devassa, chegaram apenas quatorze, dos duzentos participantes esperados. É crível que devido à pressa, a convocação dos envolvidos e simpatizantes dera-se em forma precária. 

Os poucos chegados escaparam, por pouco, de serem aprisionados, já que o conciliábulo fora denunciado. Em uma roça vizinha ao campo do Dique estava reunida uma centena de soldados e cativos armados de cassetetes. É também crível que um número indeterminado de jacobinos tenha abandonado apressadamente o campo do Dique ao tomar conhecimento do esquema repressivo, armado com inabilidade pelo tenente-coronel Alexandre Theotonio de Souza, que circulava disfarçado com um capote branco!
A reunião fora denunciada pelo liberto ferrador Joaquim José da Veiga e pelo barbeiro Joaquim José de Santana, capitão do Terceiro Regimento de Milícias de Homens Pretos. Os dois alcagüetes estariam em contato com os agitadores e optaram pela denúncia quando foram convidados para participar da revolta. Se não o fizessem, incorriam em crime de alta traição, caso a conspiração fosse descoberta. Se o fizessem, estavam certos das recompensas que receberiam.

Repressão imediata
Joaquim José de Santana, que registrou no seu depoimento, quando da devassa, a esperança de uma promoção, segundo ele muito merecida, era o responsável pela guarda das armas de sua milícia, uma figura centrar, portanto, na conspiração. Por instruções das autoridades coloniais, Joaquim José de Santana e Joaquim José da Veiga participaram da reunião do Campo do Dique, para melhor traírem seus ex-companheiros. Houve, igualmente, um terceira denúncia, tardia.

Nos dias seguintes, a repressão abateu-se entre os conspiradores, que foram presos em suas casas, no Recôncavo ou no interior, onde tentaram refugiar-se. A seguir, sob a ordem do governador, abriu-se nova devassa sobre os fatos, instruiu-se processo no qual foram denunciados trinta e quatro réus, todos do sexo masculino, e castigou-se, duramente, os presuntos cabeças do movimento. 

Fora bem superior o número de presos e, sobretudo, de denunciados, durante as investigações, na nova devassa aberta para apurar a reunião sediciosa e o eventual movimento revolucionário. Certamente, número de os homens livres e escravizados envolvidos, direta ou indiretamente, nas articulações sediciosas seria considerável.

O governador esforçou-se, sempre, para que os homens bons que participaram nas discussões, debate e conspiração liberal ficassem à margem das denúncias, sendo inculpados, fora poucas exceções, apenas “pessoas insignificantes”. Os historiadores que estudaram o movimento de 1798 esforçaram-se em precisar quão amplo fora o círculo social da conspiração e os motivos da exclusão dos jacobinos excelentes das devassas.
No último quartel do século 18, importantes setores ilustrados da administração lusitana propunham impedir a independência colonial integrando as classes proprietárias brasileiras em um projeto que emancipasse o Brasil no seio de um império lusitano reconstruído que tivesse Portugal por centro, sobretudo mercantil.

Mantendo-se os homens bons envolvidos na conspiração à margem das investigações cumpria-se um ato de solidariedade social, respeitava-se o pacto inter-proprietários e procurava-se não comprometer a possibilidade futuras negociações com membros das classes excelentes baianas. Segundo parece, os conspiradores utilizavam barba crescida, um búzio de Angola nas correntes dos relógios e argolinha em uma das orelhas. 

A revolta teria uma bandeira tricolor – uma tira branca, entre duas azuis, paralelas à haste. Sobre a tira branca encontrava-se uma grande estrela vermelha com outras cinco menores. Embaixo da estrela estaria assinalada o lema nec mergitur “sem soçobrar”. Porém, não há registro documental sobre essa bandeira.

Em cima do muro
O governador Fernando José de Portugal seria acusado de anterior complacência para com os conspiradores. Efetivamente, havia muito que ele sabia da difusão de francezias na Bahia, devido à denúncia, em agosto/setembro de 1797, do coronel Francisco José de Mattos Ferreira e Lucena, comandante do Segundo Regimento de Linha. O governador minimizara os atos e apenas repreendera, verbalmente, o tenente Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja, o mais visível dos adictos às idéias européias.

A historiografia tradicional apontou a proverbial “bonomia” e falta de iniciativa de Fernando de Portugal como motivos da sua apatia anterior a 12 de agosto, diante da ação dos conspiradores. A consciência do governador da impossibilidade de manter, através da mera repressão, o império colonial português, explica seu comportamento diante das “francezias” baianas, que foi interpretada pelos absolutistas como complacência e pelos conspiradores simpatia. 
 
Os conspiradores pretendiam manter o governador no seu posto, após aderir ao novo governo. A contemporizasse com o liberalismo de Fernando de Portugal deveria-se também ao incerto resultado do confronto europeu entre a França revolucionária e os Estados absolutistas. Os conspiradores acreditavam em um eventual desembarque francês na Bahia. É crível que, sob sugestão dos revolucionários baianos, um oficial francês apresentou, em agosto de 1897, ao Diretório, proposta de ataque à Salvador e apoio aos conspiradores. Fato que certamente confirma o envolvimento de franceses nas deliberações sobre a revolta.

O status racial e jurídico dos conspiradores ilumina-nos sobre a essência da revolta, nos seus momentos finais. Dos inculpados, dez eram brancos e os 24 restantes, homens de cor – pardos, pardos claros, pardos escuros, pardos trigueiros e pardos fuscos. Negro havia apenas um, como assinalou o próprio governador, em correspondência com Portugal. Tratava-se de um cativo procedente da costa da Mina. 

No relativo às atividades profissionais, havia sobretudo soldados e oficiais da tropa paga e alfaiates, além de um professor, dois ourives, um bordador, um pedreiro, um negociante, um carapina e um cirurgião prático. Homens que viviam, portanto, do seu trabalho. Dentre os inculpados, 23 eram homens livres ou libertos e 11, escravos! Os últimos eram, em grande maioria, cativos com habilidades artesanais postos ao aluguel – alfaiates, sapateiro, cabeleireiro, etc.

Público exemplo
Apesar da conspiração jamais ter chegado às vias dos fatos, ela foi punida com rigor exemplar. Além de penas de desterro, foram enforcados e esquartejados, em 8 de novembro de 1799, na praça da Piedade, enquanto os sinos das igrejas de Salvador badalavam impiedosamente, os soldados Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas de Amorim, de 24 anos, também marceneiro, que resistiu destemidamente à prisão; e os alfaiates João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos Santos Lira, liberto. Todos eles eram pardos. Um cativo, Antônio José, teria se suicidado no cárcere.

Os quatro condenados foram esquartejados, tiveram os corpos despedaçados expostos como público exemplo, suas famílias foram infamadas, por três gerações. Um quinto condenado à morte jamais foi encontrado. Os depoimentos indicavam-no como um dos principais cabeças do movimento. Escravos participantes da conspiração foram condenados a quinhentos açoites e vendidos para a distante e temida … capitania do Rio Grande do Sul.

Diversos homens brancos foram apontados como participantes ou simpáticos ao movimento. Porém, nos poucos casos em que foram inculpados, sofreram penas leves. Entre os presos acusados de participarem da conspiração foram arrolados Cipriano José Barata de Almeida, ex-lavrador de terra, cirurgião aprovado, possuidor de 35 livros; Moniz Barreto e os tenentes José Gomes de Oliveira Borges e Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja

O tenente Pantoja, de 28 anos, proprietário de 26 livros, teria afirmado, quando da cerimônia de seu casamento, que bastaria, para celebrar as núpcias, que os noivos confirmassem o desejo de união. Portanto, além de revolucionário, livre-pensador! Quanto ao tenente José Gomes, ele teria recebido, em sua residência, para almoço, os soldado Lucas Dantas, o sargento Joaquim Antônio da Silva e o alfaiate João de Deus, todos jacobinos. Membros ainda mais excelentes das classes dominantes baianas foram apontados como simpáticos aos jacobinos mas jamais incomodados.

Affonso Ruy, no seu livro já clássico Primeira revolução social brasileira, aponta como dirigentes do movimento liberal baiano o farmacêutico João Ladislau de Figueiredo Melo; o padre Francisco Agostinho Gomes; o intelectual José da Silva Lisboa; o senhor-de-engenho Inácio Siqueira Bulcão; o cirurgião Cipriano de Almeida Barata, e o professor de retórica Francisco Muniz Barreto.

Tudo leva a crer que não houve participação orgânica de membros das elites baianas nos fatos de agosto, ou na agitação jacobina que se desenvolvia, no mínimo, desde o início de 1798, através de ações diretas como a queima da forca e a distribuição de manifestos. Nesse sentido, resta à historiografia elucidar as reais articulações entre os liberais das elites e os jacobinos negros de Salvador.

Branco e negro
Tudo leva a crer que, por caminhos apenas parcialmente elucidados, as idéias democráticas e revolucionárias francesas, esposadas por membros das elites baianas, foram largamente acolhidas por artífices e soldados de cor, sobretudo de Salvador, que as reelaboraram e as adequaram à realidade social de então, resultando daí o mais avançado programa político jamais proposto no Brasil, até a Abolição. 

A documentação conhecida sugere que o tenente Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja serviu como interlocutor entre os membros ilustrados e liberais das elites e os núcleos jacobinos das classes subalternas baianas. Nesse contexto geral, a difusão de manifestos pode até mesmo ter servido como tentativa, consciente ou inconsciente, de pôr fim ao imobilismo dos jacobinos abonados, eventualmente paralisados pelas questões postas pela abolição da ordem escravista. Como já foi dito, as elites coloniais interessavam-se pela liberdade de suas regiões mas opunham-se à liberdade dos cativos.

O descaso historiográfico com a conspiração baiana de 1798 não se deve ao fato de jamais ter passado aos atos. A chamada Inconfidência Mineira ruiu igualmente com um castelo de cartas e tem sido rememorado, sendo atualmente motivo de um feriado nacional. O silêncio construído em torno da chamada Conspiração dos Alfaiates deva-se ao seu radicalismo e ao seu caráter plebeu. O primeiro movimento, relativo sobretudo à capitania das Minas Gerais, assumiu dimensão histórica nacional, enquanto a Revolta dos Alfaiates prossegue sendo rememorada e vista sobretudo como sucesso baiano. 

Mesmo que tenham participado da inconfidência homens de status social mais elevado, a hegemonia da conspiração encontrava-se, ao menos nos momentos finais, com os soldados, artífices e cativos pardos de Salvador. Tudo leva a crer que eles não recorreram a ninguém para redigir os manifestou ou convocar a reunião de 25 de agosto. 

O fato da conspiração ser sobretudo obra de humildes trabalhadores de cor explicaria por que conseguiu – fato único na história do Brasil – incorporar ao movimento trabalhadores escravizados e propor o fim da escravatura, certamente sob a inspiração da decisão da Convenção francesa de abolir a instituição, nas colônias francesas, em 1794. Essa medida, jamais aplicada, foi anulada em 1802, por Napoleão Bonaparte. 

A significativa participação de trabalhadores escravizados no movimento e a proposição da abolição da escravatura asseguravam ao movimento um caráter socialmente revolucionário, já que, na Bahia e no Brasil de então, o escravismo era a forma hegemônica de exploração do trabalho. A eventual vitória do movimento e consecução de seu programa anteciparia, ao menos na Bahia, em quase um século, a vigência de relações de trabalho livre.

A Conspiração dos Alfaiates pode ser aproximada à Conjuração dos Iguais, de Gracus Babeuf, desbaratada apenas dois anos antes, em 1796, na França. A primeira propôs, em uma sociedade escravista, o fim da discriminação racial e da instituição. A segunda assinalou o ingresso das classes trabalhadoras, em forma independente, na arena política e social, quando o capitalismo impunha-se, na França, como forma social de cominação. Uma analogia que ressalta, ainda mais, o grande paradoxo do movimento de 1798.

Uma grande questão posta pela Conspiração dos Alfaiates espera ainda ser elucidada. Isto é, as condições sui generis que permitiram, em 1798, na Bahia, que segmentos sociais subalternos articulassem um programa político, de conteúdo democrático e revolucionário, para toda a sociedade. 

A repressão do movimento dos jacobinos baianos pôs como uma pedra lapidar sobre essa luta cidadã. Era como se ali fenecesse a proposta, chegada dos setores explorados, de uma sociedade democrática e igualitária. Apenas os abolicionistas mais extremados, um século mais tarde, esboçaram programa democrático igualmente tão amplo.
A agonia da Conspiração dos Alfaiates não significou o fim da agitação social. Ao contrário, a partir de 1807, a tensão entre os trabalhadores escravizados de Salvador aumentaria, com inusitado vigor, explodindo, periodicamente, para desembocar na grande revolta servil de 1835. Porém, apesar da violência da Revolta Malê de 1835, seu programa era claramente regressivo, em relação ao ideário anterior, já que os conspiradores proporiam, simplesmente, a morte dos brancos e dos pardos, o que restringia, inevitavelmente, a abrangência política do movimento. 

Entre as maiores dificuldades para a articulação de um movimento social, durante a escravidão, encontravam-se as diferenças culturais, lingüísticas e sociais que separavam homens livres pobres, libertos, cativos crioulos e cativos africanos. Em 1798, os próprios jacobinos baianos estabeleceram, sobretudo, sua aliança com os cativos artífices. Esses cativos constituíam uma quase elite, se comparada à grande massa africana que trabalhava, sobretudo nos campos. Os jacobinos denunciados eram, sobretudo, pardos, havendo entre eles, como vimos, apenas um negro. Porém, há indícios que os conspiradores tinham ou pretendiam ter apoios entre os cativos de engenhos.

Talvez a grande debilidade da Conspiração dos Alfaiates tenha sido a falta de tempo ou de condições de concluírem movimento que esses homens livres pobres realizaram em direção das massas escravizadas, iniciativa jamais tentado, novamente, na história do Brasil. As razões da inexistência de movimentos políticos semelhantes posteriores constitui a segunda grande questão que se desprende da conspiração de 1798.  

O Estado colonial impôs aos conspiradores castigo à altura da transgressão. Havia que reprimir, duramente, aqueles homens que, não suportando “em paz a diferença de condições e desigualdade de fortunas, de que se compõem a admirável obra da sociedade civil”, quiseram impor os “princípios anti-sociais de igualdade absoluta”, “sem distinção de cores e de estudos” – como lembra os autos do processo. Destaque-se que, 210 anos após a conspiração, seu programa, absolutamente atual, espera ainda ser materializado no Brasil.

Na Inconfidência Mineira, movimento de proprietários, escravistas, clérigos e intelectuais, apenas um conspirador, o mais humilde, foi executado. Na Bahia, conspiração de artífices, soldados e cativos, quatro de seus líderes padeceram em uma forca, levantada alguns palmos acima do habitual, para assinalar a gravidade do crime. Certamente os mesmos motivos explicam o silêncio relativo em que se mantém, ainda hoje, esses acontecimentos.
 
Bibliografia sumária:

“A Inconfidência da Bahia em 1798: Devassas e seqüestros”. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro, volumes 43-45, pp. 83-255; 3-421.
“Autos de devassa do levantamento e sedição intentados na Bahia em 1798”, ANAIS DO ARQUIVO PÚBLICO DA BAHIA, Salvador, Imprensa Oficial, vol. 35 e 36, janeiro/junho; julho/dezembro de 1959, pp.1-280; 281-634.
ARAÚJO, Ubiratan Castro de. et al. II Centenário da sedição de 1798 na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 1999.
Arquivo Público do Estado da Bahia. Autos da devassa da Conspiração dos Alfaiates. Ed. de Maria Helena O. Flexor. Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo/ Arquivo Público do Estado, 1998. 2v
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